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Assunto: Cinema Português
Data: 04/11/2015
José Fonseca e Costa (1933-2015)
José Fonseca e Costa (1933-2015)

 José Fonseca e Costa (1933-2015)


No dia em que a Cinemateca exibe Sem Sombra de Pecado em sessão especial de homenagem, vem-me à memória aquele outro dia em que o José Fonseca me falou, com gozo e indisfarçável orgulho, do complicado plano-sequência que ele, o Eduardo Serra e a equipa tinham acabado de fazer para inserir no troço de abertura do filme. Falar em plano-sequência seria já entrar nas recorrências da sua obra inicial e na relação umbilical dela com o cinema moderno das décadas de cinquenta, sessenta e setenta – o cinema com que se formou e com o qual tanto quis dialogar, de Inglaterra (o primeiro país em que tentou estudar cinema, provavelmente no rasto do free cinema), a Itália e à Europa de Leste passando pela América Latina… Mas o que há que lembrar aqui é essa coisa mais simples da relação visceral que ele tinha com o cinema dessas décadas, com o cinema, e que, independentemente das filiações individuais, foi marca de geração. Já escrevi antes que, pelo que fez no seu conjunto, esta foi certamente a mais importante geração de toda a história do cinema português. Com a partida do José Fonseca parte mais um dos construtores dessa obra colectiva – e sublinho os termos “construtor” e “colectivo” porque ambos têm significado profundo quando evocamos a sua contribuição. Sendo um dos últimos a chegar à longa-metragem (mas chegando lá após longa experiência de curtas), o José Fonseca e Costa fez e marcou o percurso que mudou o destino do cinema em Portugal, dos cineclubes à realização, passando pelos estágios formativos (neste caso com Antonioni), pela escrita (crítica, tradução e ensaísmo), e pela decisiva obra de grupo que foi o Centro Português de Cinema. Foi assim um dos óbvios protagonistas da cultura cinematográfica portuguesa e da vivência de grupo em que assentou o Cinema Novo, e foi alguém que, a partir daí, nunca deixou de viver com o cinema e de respirar cinema, e de o respirar completamente, por muito que as batalhas subsequentes tenham podido levar alguns a pensar de outro modo. Insistindo a certo ponto num projeto industrial com que outros não se identificaram – o projeto recorrente que atravessou com destino ingrato toda a história do nosso cinema, no qual à criação pontual de infraestruturas nunca chegou a corresponder, nem houve nunca condições para corresponder, uma verdadeira prática industrial – Fonseca e Costa chamou também a atenção (e julgo que com inteira justiça) para o enorme equívoco de olharmos para essa diferença confundindo-a com oposição, ou sequer distância, em relação a um cinema de autor. Olhemos como quisermos as linhas divergentes que acabaram por ser as da geração de sessenta, mas combatamos o cliché de uma tal oposição, que não explica nada do que foi a identidade do moderno cinema português, ou seja, precisamente aquele que, no seu conjunto, pesem embora todas as diferenças, foi obra dessa geração.

José Fonseca e Costa fez um cinema pessoal como todos os que sustentaram aquela identidade, uma obra em relação à qual, de resto, habituais simplificações – como as que mencionam o primado do argumento, da “história” ou do “Actor” – nunca chegarão para dar conta nem do que ele quis fazer nem de tudo o que realmente fez. Talvez o estudo desse cinema deva antes começar pelo reconhecimento de coisas concretas que se situam fora das divisões ai pressupostas, como seja a constatação de que o realizador foi alguém que nos fez ver o país e a história recente dele, alguém que teve exigências constantes de produção (a ênfase no filme de época), e alguém que, insisto, pensava o discurso também com base em preocupações formais que tinham estado na génese do cinema moderno. A história da geração não está feita nem pode ainda ser feita, tal como não pode ainda ser feita a história deste percurso individual e do seu lugar no todo. Mas como imaginar que algum dia essa história maior possa vir a passar ao lado do seu nome?

 


José Manuel Costa

4. 11. 2015